Considerações sobre Adoração e Cultura

Considerações sobre Adoração e Cultura

1. Há muito pouco no Novo Testamento sobre as formas, estilo e conteúdo da adoração coletiva. Seguir as formas do Antigo Testamento muito de perto contradiz a depreciação dos odres de vinho. Deus tinha a intenção de deixar essa questão sobre a forma, e estilo, e conteúdo sob o julgamento da nossa sabedoria espiritual — e não ao nosso capricho ou nossa tradição, mas a uma reflexão feita em oração, bem pensada, culturalmente alerta, auto-crítica, biblicamente saturada, centrada em Deus, que exalte a Cristo, impulsionada por uma paixão que seja preenchida com toda a plenitude de Deus. Suponho que isto será um processo contínuo, não um esforço isolado.

2. Uma maneira de descrever as diferenças em como as pessoas abordam a adoração é falar em termos de cultura erudita e cultura popular. Por “cultura” me refiro a um padrão de vida, incluindo pensamento, emoção, fala e atividade. Por “cultura erudita” tenho em mente o padrão de vida que coloca uma alta prioridade em expressões artísticas e intelectuais que exigem extraordinária capacidade de produzir e, muitas vezes, exigem esforços disciplinados para entender e apreciar. Por “cultura popular” tenho em mente o padrão de vida que coloca uma alta prioridade em expressões do coração e da mente, que agrada e ajuda as pessoas comuns sem exigir esforço excepcional.

Por exemplo, é a diferença entre música clássica e bluegrass (ou easy listening ou rock ou show tunes ou MPB ou sertanejo — onde todas são “a música do povo”, embora eu perceba que há uma continuidade, ao invés de uma caixa específica para todos os tipos e qualidades de música).

Ou, outro exemplo, seria o contraste entre um drama shakespeariano no Teatro Municipal e “O Império Contra-Ataca” em um cinema.

Ou pode-se pensar na diferença entre ler o poema de Gerard Manley Hopkins, “Falcão ao Vento: a Cristo Nosso Senhor.”

Vi de manhã o mimo da manhã montando,

Delfim do despertar do dia, fulvo falcão em luz listrando-se,

Sob si sinuoso ar sereno, e após alçando-se

Ali tão alto: que altivo o seu freio e mando.

Ou, por outro lado, ler a poesia caseira de Edgar A. Guest,

É preciso muita experiência de vida para fazer de uma casa um lar.

3. Não devemos julgar a cultura erudita ou a cultura popular ‘per se’. Existem caricaturas dos excessos em ambas que são fáceis de condenar. Esse não é o nosso propósito. É mais lucrativo considerar os pontos fortes e fracos construídos em ambas, de modo a evitar os pontos fracos e afirmar os pontos fortes em ambas. A cultura erudita e a cultura popular têm vulnerabilidades intrínsecas ao pecado e potenciais únicos para uma bondade que glorifique a Deus. Elas são resgatáveis.

4. As vulnerabilidades intrínsecas da alta cultura incluem elitismo e esnobismo. Ao exigir altos níveis de intelecto e habilidade, ela facilmente infla o ego daqueles que têm exito e os tenta a olhar com desprezo para a cultura popular com suas realizações mais simples. Ela facilmente isola o conhecimento técnico das maiores questões da vida e tenta dar-lhe um valor intrínseco, em vez de definir o seu valor em relação a outras realidades espirituais e pessoais mais importantes. Ela é inevitavelmente menos acessível para as pessoas comuns e, portanto, tende ao desempenho, em vez da participação, e essa orientação para o desempenho carrega novamente a tendência para uma atmosfera de indiferença e distância.

5. As vulnerabilidades intrínsecas da cultura popular incluem preguiça e descuido. Há uma deriva intrínseca em direção ao aumento da indiferença à simples disciplinas que definem excelência aos níveis mais rudimentares (por exemplo, uso errado da gramática em canções de adoração, tais como “você reinas” ou ter “você” e “tu” na mesma linha. Não é como dizer ‘num’ na frase “Você num vale nada”. É como cantar “Tu num vale nada.”) A cultura popular, com o seu anti-intelectualismo intrínseco, tende a dar curto-circuito na mente e mover as emoções por atalhos. Assim, a cultura popular, geralmente, não é uma força de conservação para a grande doutrina bíblica.

6. Os potenciais positivos da cultura erudita incluem a preservação do que poderíamos chamar da “vida da mente”. A cultura erudita é mais propensa do que a cultura popular a injetar no fluxo da sociedade o compromisso de pensar muito e pensar com clareza. É mais propensa do que a cultura popular a evitar que o intelecto atrofie. É especialmente importante que os cristãos não entreguem a vida da mente para o mundo secular. Primeiro, porque ela pertence a Deus, e ele nos ordenou a amá-lo com nossas mentes e, segundo, porque perderemos as gerações seguintes se não tivermos expressões de fé confiáveis intelectualmente para passar para eles.

Além disso, a cultura erudita tem o potencial de preservar os próprios conceitos de verdade, excelência e beleza como objetivos ideais enraizados em Deus como nosso Absoluto. A cultura popular tende sempre a exaltar o que funciona. Ela é intrinsecamente pragmática e coloquial, e não mede suas realizações em termos de ideais absolutos e objetivos, mas em geral, em termos do grande apelo e efeito prático. A cultura erudita tende a marchar à batida de um baterista e não ao apelo da massa ou efeito prático. Na melhor das hipóteses, ela se esforça para criar imagens de excelência, beleza e verdade que ecoam com mais fidelidade a excelência suprema de Deus. A cultura erudita tem, assim, o potencial (se não o sucesso contemporâneo) de ajudar a preservar as complexidades reais da verdade e, assim, proteger contra a tendência intrínseca da cultura popular de caminhar em direção à simplificação excessiva e eventual distorção.

A cultura erudita tem o potencial de tocar algumas emoções que a cultura popular não irá tocar. A cultura popular tende para o que pode ser comumente compartilhado e, portanto, minimiza o que é raro. No entanto, algumas emoções que pertencem a Deus são raras e profundas, e podem ser despertadas e conduzidas melhor através das expressões da cultura erudita. Por exemplo, há provavelmente algumas noções de grandeza que encontram melhor preservação e expressão em algumas declarações artísticas grandes e magníficas que não fazem parte da cultura popular.

7. Os potenciais positivos da cultura popular incluem encontrar as pessoas onde elas estão a fim de se comunicar. A cultura popular afirma a importância de construir pontes de experiência compartilhável. É uma mentalidade de vá-e-conte ao invés de venha-e-veja. Ela vai além do esperado para fazer sua visão acessível para a pessoa comum.

A cultura popular mantém a clara verdade de que grupos de elite de intelectuais e artistas, que olham com desprezo para o homem comum e suas necessidades e gostos, não são pessoas admiráveis, não importando o quão desenvolvidos sejam seus talentos. A cultura popular tem o potencial de nos lembrar que Deus deve ter amado as pessoas comuns, porque ele fez tantas delas. A cultura popular é, por natureza, encarnada: ela veste suas reivindicações com a pele das pessoas comuns e afirma implicitamente o valor de se conectar com a mente e o coração das massas.

A cultura popular, no seu melhor, tem o potencial de tocar as emoções que a cultura erudita geralmente não irá tocar. Assim, a cultura popular homenageia a preciosidade das maravilhas comuns. Apaixonar-se, fazer uma caminhada, comer uma boa refeição, conversar com um amigo, nadar no oceano, ter um bebê, plantar um jardim — todas estas coisas são suscetíveis a ser o objeto de criações e comunicações da cultura popular. Ela nos ajuda a não negligenciar a beleza comum.

8. Na igreja, tudo o que fazemos cai em algum lugar na continuidade entre a cultura erudita e a cultura popular. Nossa música, nossa arquitetura, os nossos móveis, o nosso vestido, os nossos materiais escritos, nossa pregação e ensino, nossa conversa entre os cultos, etc.

9. Ao pensar sobre as nossas formas de adoração e sobre o tom geral e atmosfera da nossa igreja, devemos levar em consideração as possíveis vulnerabilidades e potenciais da cultura erudita e cultura popular. Nós esperamos ser capazes de afirmar tudo o que é bom em ambas as culturas, de encontrar uma forma não só de “sermos nós mesmos” (que é parcialmente inevitável), mas de sermos o que precisamos ser para honrar a excelência, verdade e beleza de Deus, e para alcançar todos os tipos de pessoas que Deus está nos chamando para tocar.

10. Este será um processo contínuo, e não uma descoberta isolada.

Por: John Piper. © 1990 Desiring God Foundation. Original: Thoughts on Worship and Culture

Tradução: Kellvyn Mendes

Comentários

comentários